Comida sempre foi um assunto muito importante para mim. Em primeiro lugar porque sempre amei comer: eu era uma daquelas crianças que comia de tudo com boca boa, do brócolis ao brigadeiro. E em segundo lugar porque me envolvi profundamente com a arte/ciência de cozinhar. A partir dos 8 ou 9 anos de idade, eu já ia para a cozinha sozinha e inventava moda com bolos e biscoitos aos finais de semana.
Quando chegou a hora de escolher uma carreira, não tive a menor dúvida que “comida” seria o assunto principal dela. Comecei pela Nutrição e por quatro anos aprendi sobre o efeito dos alimentos no corpo humano, a química e física da cozinha e os aspectos sociais e de saúde pública da alimentação. Os próximos anos foram dedicados a Gastronomia: foram aulas e estágios em cozinha com a mão na massa (literalmente).
Em todo este tempo (e até o dia de hoje), o assunto “comida” foi formando novos desenhos em minha mente. Percebi rapidamente que não me encaixaria na abordagem tradicional da Nutrição e que ter um restaurante ou trabalhar em uma cozinha tradicional também não era meu caminho. Entendi que precisa ajudar as pessoas em suas jornadas de alimentação de outra maneira…
Não é preciso muito para notar que a alimentação é um assunto de delícias e angústias para quase todos. Converso muito sobre comida diariamente (70% do meu tempo é gasto pensando, pesquisando, aprendendo, preparando, comprando e falando sobre comida), como antes mencionei, este assunto faz parte da minha identidade. E ao cultivar conversas sobre isso com as pessoas ao meu redor nos últimos anos, percebi algumas tendências. A primeira é que quase todo mundo ama comida. Chamo atenção ao verbo que escolhi: “amar”. Temos uma relação profundamente emocional com os alimentos: eles representam muito mais do que nutrientes e combústivel para nós, mas também memórias, paz e até consolo.
Em celebrações de aniversário, o brigadeiro aparece e marca a nossa infância. Para comemorar um casamento, encomendamos bolos decorados e deliciosos, escolhidos pelos noivos com zelo. Quando pegamos uma gripe ou resfriado, nossas mães, avós, tias ou outras figuras de cuidado nos trazem alguma sopinha, mingau ou canja para nutrir o corpo e o coração. Ela está intimamente ligada com a nossa identidade cultural e conta muito sobre “de onde viemos” e “por onde passamos”.
A alimentação é relevante espiritualmente também. Em quase todas as religiões, a prática de abster-se de comida está presente na forma de jejum. Existem também práticas específicas em algumas religiões que proíbem o consumo de certos alimentos como carne de porco, frutos do mar ou a mistura de leite com carne bovina por exemplo. No cristianismo, que predomina aqui no Brasil, a comida está presente em momentos-chave como a ceia ou a eucaristia.
Tratar a comida simplesmente como combustível, remédio ou nutrientes é ignorar a totalidade de suas dimensões.
A beleza do alimento é justamente sua complexidade: além de todas essas ligações sentimentais e espirituais, a comida tem a essencial função de nos manter… vivos e funcionantes. Quando analisamos uma simples cenoura, descobrimos uma riqueza de nutrientes! É fascinante para mim como o processo de cozinhá-la, colocar algo ácido nela ou combiná-la com outros alimentos muda a sua conformação física e química… e mais, muda o efeito que ela tem no corpo humano.
Que coisa linda é ver que a comida foi feita para o corpo e o corpo para a comida. Talvez isso não te deslumbre tanto, mas eu me encantei tanto ao descobrir os caminhos do alimento dentro do corpo humano! Que incrível máquina de digerir, absorver, aproveitar e excretar que o organismo é! O poderoso fígado e seu metabolismo de toxinas, o incrível pâncreas e seu primoroso trabalho com a insulina, o majestoso estômago e seu eficiente suco gástrico… Nosso corpo foi feito para funcionar lindamente comendo uma diversidade de alimentos cheirosos, gostosos e coloridos. Deu pra perceber como o assunto “alimentação” é uma delícia, certo? Ok, agora vamos a tal da “angústia” que anda acompanhando este tópico.
Ao mesmo tempo que a comida encanta, ela assusta. Nas últimas décadas, o assunto alimentação apareceu cheio de “exigências novas”: bastam alguns minutos nas redes sociais, um papo com uma tia que assiste programas matinais na televisão ou uma conversa rápida com um colega de academia para perceber isso. Ser “saudável” parece estar cada vez mais complicado e confuso: são recomendações de dietas baixas em carboidrato, orientações sobre o tal do glúten, testemunhos apaixonados que falam sobre as maravilhas da água de berinjela em jejum pelas manhãs… Nunca se falou tanto sobre Nutrição! Nunca tivemos tantas materiais, receitas e “conhecimento espalhado” sobre o assunto! E ao mesmo tempo, nunca tivemos tantos problemas e doenças relacionadas a alimentação.
Contraditório, né? Somos uma geração de obcecados por saúde, exercício e alimentação e ao mesmo tempo somos a geração da diabetes (que agora aparece com cada vez mais frequência em crianças), da pressão alta, da síndrome metabólica, do câncer, do sobrepeso, da obesidade.
A ideia de criar nosso curso "Descobrindo a Cozinha Saudável" veio justamente dessa dualidade. E devo confessar que ela também teve motivação emocional: meu coração dói toda vez que converso com meu público nas redes sociais e percebo medo, desconfiança e sofrimento nas escolhas alimentares.
Comer deveria ser somente uma delícia e não uma angústia. Deve ser um ato de amor, de cuidado, de prazer, de descoberta, de lembrança, de nutrição… mas não de culpa ou sofrimento!
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